“Com o Papa Francisco, é
possível que se revertam as opções predominantes na vida eclesial nas últimas
décadas. Num mundo torturado pela fome, a maré ‘não está pra peixe’. Quem tem
ouvidos, ouça!”, declara bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João
de Meriti.
Confira a entrevista.
“De 32 milhões de brasileiros,
ainda subsistem 16 milhões em estado de insegurança alimentar e nutricional;
mas a presunção nos leva a acreditar que em menos de duas décadas resolvemos
uma calamidade que perdura desde 1500”, afirma Dom Mauro Morelli, bispo emérito
da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, que há anos dedica-se a
solucionar os problemas da fome e da miséria no Brasil. Um dos críticos do
Programa Fome Zero, no governo Lula, Morelli afirma que “a visão triunfalista
impede dizer que não fizemos o mais importante. Patinamos em medidas
assistenciais, exigência do direito lesado, negado ou periclitante, mas que,
por natureza, não se destinam a equacionar problemas estruturais”.
Em entrevista, ele assinala
que o mapa da fome cobre “toda a superfície do planeta e não será resolvido
pela economia de mercado”. Cita como exemplo a proposta da Cúpula da
Alimentação, convocada pela ONU, a qual tinha o objetivo de reduzir pela metade
o número de famintos no mundo até 2015. “Tudo o que foi feito não atinge o
objetivo proposto, ou seja, quatrocentos milhões, uma vez que estamos chegando
a 2015 com mais de 1 bilhão de seres humanos sofrendo os horrores da fome não
atendida”, lamenta.
Mauro é um dos fundadores do
Movimento pela Ética na Política. Fortaleceu a Ação da Cidadania contra a Fome,
a Miséria e pela Vida. Esteve à frente da criação do conceito de segurança
alimentar como combate à fome e foi um dos articuladores do programa Mutirão de
Combate à Desnutrição Materno-Infantil. Foi membro do Comitê Permanente de
Nutrição da ONU, e atualmente é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e
Nutricional Sustentável de Minas Gerais – CONSEA/MG.
IHU On-Line – A partir do
trabalho que desenvolveu de combate à miséria e à fome, como avalia essa
questão no país? Considerando o tempo que o senhor atua a favor dessa causa,
que balanço faz da questão?
Dom Mauro Morelli – A fome em
si é coisa boa. Um sintoma ou alerta emitido pelo cérebro para chamar atenção
para a necessidade de alimentar e nutrir o organismo, pois a vida é um processo
permanente de alimentação. Alimento é Vida.
Problema sério é ser privado
do direito ao acesso e gozo do alimento. Mais do que um problema, trata-se de
ser vítima de crime hediondo e grave pecado. A questão não é acabar com a fome,
mas garantir acesso e gozo ao alimento que sacia e nutre. A Força da Vida vem
da luz, do oxigênio, da água, das carícias da brisa e da ternura do amor. Leite
materno, arroz e feijão, legumes e frutas, peixes e carnes são indispensáveis
nas etapas de nosso desenvolvimento e formação. Alimentação saudável, adequada
e solidária é imprescindível desde a gestação até o encerramento do ciclo
histórico de nossa existência. Em nosso DNA estão registradas certezas e
angústias da importância prioritária do alimento e da nutrição na história da
humanidade.
As civilizações e a rica diversidade
cultural entre os povos atestam a centralidade do alimento e da nutrição para a
realização das pessoas, das famílias e nações. Alimento e nutrição são
exigências inegociáveis da nossa vida no planeta, portanto direito humano
básico e determinante para tudo o mais. A garantia do alimento fundamenta a
própria paz. Alimentar o corpo, a alma e o espírito é questão de cidadania
planetária e razão primeira do progresso e do desenvolvimento.
IHU On-Line – Como se
constitui hoje o mapa da fome no Brasil? Em que regiões do país a fome ainda
continua sendo um problema central?
Em 1996, em Roma, a Cúpula da
Alimentação, convocada pela ONU, marcou data e definiu compromisso para o
enfrentamento do problema da fome no mundo. “Tudo faremos para reduzir pela
metade o número de famintos no mundo até 2015”.
Em verdade tudo o que foi
feito não atinge o objetivo proposto, ou seja, quatrocentos milhões, uma vez
que estamos chegando a 2015 com mais de 1 bilhão de seres humanos sofrendo os
horrores da fome não atendida. É impossível sonhar com a paz enquanto uma só
criança definhar e morrer de fome (Isaías, 65).
Entre nós, muito foi feito; de
32 milhões de seres humanos, ainda subsistem 16 milhões em estado de
insegurança alimentar e nutricional. Mas a presunção nos leva a acreditar que
em menos de duas décadas resolveremos uma calamidade que perdura desde 1500.
Mais grave ainda é a visão
triunfalista que impede dizer que não fizemos o mais importante. Patinamos em
medidas assistenciais, exigência do direito lesado, negado ou periclitante, mas
que, por natureza, não se destinam a equacionar problemas estruturais. A
obesidade em números alarmantes é a outra face da realidade nutricional
resultante do assistencialismo com suas migalhas e da falta de educação
alimentar e nutricional que nos motive a comer e beber como opção pela vida.
Não nos esqueçamos, além do mais, que “o veneno está à mesa”, dada a qualidade
dos alimentos produzidos e comercializados visando o lucro.
A Profecia dos Caranguejos
Deve ser atribuído a Josué de
Castro o mérito de termos atingido elevado grau de consciência sobre as causas
e males da fome. Por seu testemunho e obra, pode ser denominado e honrado como
o grande Profeta da Vida no século XX. Nos mangues do Capibaribe, e não na
Sorbonne, ele entendeu a fome.
“Um dos fatores mais
constantes, o desequilíbrio econômico, com as desigualdades sociais que dele
nascem”. “A fome sempre existiu perto da riqueza e da abundância. O que é novo
no mundo é a consciência que os povos famintos têm da realidade social e da sua
condição e a impaciência que experimentam para se libertar da fome e de suas
misérias”.
Na obra Geopolítica da Fome
(1946), afirma com indignação: “Nenhuma calamidade é capaz de desagregar tão
profundamente e num sentido tão nocivo a personalidade humana como a fome”.
IHU On-Line – Em que consiste
uma política pública comprometida em acabar com a fome no mundo?
A Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil – CNBB, em sua 40ª Assembleia Geral (2002), assumiu o
compromisso de promover um Mutirão Nacional à luz de “Exigências Evangélicas e
Éticas para a Superação da Miséria e da Fome” (Doc. 69). Observo que, no número
66, não deixa dúvida que “um dos primeiros sinais de efetiva evangelização, no
início deste milênio, será a eliminação da fome decorrente da miséria, em nosso
país”. No número 65 recomendava acompanhar a continuidade da Cúpula Mundial da
Alimentação!
Com o Papa Francisco é
possível que se revertam as opções predominantes na vida eclesial nas últimas
décadas. Num mundo torturado pela fome, a maré “não está prá peixe”. Quem tem
ouvidos, ouça!
Cabe à família, à sociedade
com todas suas instituições, e aos governos, em todos os níveis e áreas de
abrangência, zelar, promover e garantir o acesso e gozo do alimento e da
nutrição a cada criança que nasce neste planeta. Devemos combater a
concentração de riqueza e sua filha primogênita, a miséria.
Integrados na cadeia
alimentar, que constitui a riqueza e a originalidade do planeta em que fomos
dados à luz, cabe-nos zelar e cuidar das fontes da vida e de sua
sociobiodiversidade. É tarefa urgente fazer surgir e/ou fortalecer sociedades
democráticas que garantam e promovam o bem comum e direito humano básico,
assegurando a cada um o acesso ao alimento e à nutrição para uma vida saudável
e participativa. Além disso, é tarefa urgente promover o desenvolvimento local,
integrado e sustentável que defenda, preserve, recupere e conserve o meio
ambiente para a atual e para as futuras gerações.
Pode ser um bom começo
planejar o desenvolvimento de baixo para cima, em cada microbacia, à luz do
binômio indissolúvel Educação e Nutrição, para atingir os objetivos da Lei n.
11.957, com novas disposições sobre alimentação escolar.
Fonte - Ihu-online
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