O Jornal COM em sua última edição (novembro) introduziu esta carta, que agora segue na íntegra:
“Não ardia o nosso coração quando ele nos falava
pelo caminho,
quando nos explicava as Escrituras” (Lc 24,32)
CARTA DO PRIMEIRO ENCONTRO DA IGREJA CATÓLICA NA
AMAZÔNIA LEGAL
Irmãs e irmãos,
Em
Manaus, entre os dias 28 e 31 de outubro de 2013, nós, bispos, presbíteros,
religiosas e religiosos, agentes de pastoral leigas e leigos, queremos
partilhar com vocês as reflexões e
análises sobre a situação atual da nossa região e as respostas que, como
pastores, pretendemos dar aos desafios de
nossos tempos....
Ao nos prepararmos para celebrar
os 400 anos do início da evangelização na Amazônia, assumimos a missão que o Senhor nos propõe, de
sermos suas testemunhas, discípulas/os, missionárias/os de sua Palavra...
“CRISTO
APONTA PARA A AMAZÔNIA” (Papa Paulo VI): memória da caminhada.
- Manaus 1953: os bispos posicionam-se
pastoralmente diante dos problemas sofridos pelos povos desta região e
enfrentar os grandes desafios que se anunciavam, pelas intervenções políticas e
econômicas.
“Se o
governo vai tentar o soerguimento econômico destas regiões,
é urgente
que um largo surto espiritual se antecipe aos progressos materiais,
e
os acompanhe, e os envolva, dando-lhes rumo seguro e feliz”
(1º
Encontro inter-regional dos Bispos da Amazônia,
Manaus 2
a 6 de julho de 1952, Documento final).
... A
Igreja amazônica nunca desanimou de sua missão. Sempre contou com missionárias
e missionários vindos de outras regiões do Brasil e do mundo que, vivendo a mística
do amor e do serviço, deram tudo de si para que povos da Amazônia não só
recebessem uma orientação adequada para sua vivência de fé, mas tivessem
respeitados seus direitos, sua dignidade e plena cidadania, suas tradições e
culturas.
“...em
nossas prelazias e dioceses existem sinais de alegria e esperança,
próprias
de uma Igreja que, mesmo tendo muitas dificuldades,
está viva
e responde com coragem aos desafios que se lhe apresentam”
(Discípulos
missionários na Amazônia, Manaus, 11 a 13 de setembro de 2007).
A Igreja
na Amazônia adotou e incorporou as novas orientações eclesiológicas e pastorais
vindas do Concílio Vaticano II, de Medellín e Puebla, Santo Domingo e Aparecida
e buscou evangelizar a partir de uma visão mais ampla e profunda da vida e da
realidade amazônicas. Assumiu a mística e espiritualidade do seguimento de
Jesus Cristo, uma pastoral e uma missionariedade dentro da realidade local.
- Santarém 1972, decidiu basear sua ação pastoral
e evangelizadora em duas diretrizes:
* a Encarnação na realidade, pelo
conhecimento e pela convivência, na simplicidade,
* a
Evangelização Libertadora. Armou sua tenda no meio do povo de tal modo que apareceu um rosto
eclesial bem amazônico na diversidade sociocultural, na defesa do lar que Deus
criou para toda a humanidade e na promoção da Vida em todas as suas dimensões,
sobretudo quando é ameaçada pelos impactos causados por um equivocado conceito
de progresso que confunde desenvolvimento com crescimento meramente econômico,
multiplicação de riqueza material, incremento do PIB, expansão do agronegócio,
aumento de produção de biocombustíveis, descuidando-se, porém de políticas
públicas e deixando de promover a justiça e o bem-estar de todos e para todos.
- Manaus 1997: “E porque
progredimos na compreensão de sermos uma Igreja no mundo, amando o mundo
amazônico, temos a certeza que estamos dando à sociedade amazônica nossa
contribuição histórica de alta qualidade para o resgate das dívidas sociais tão
pesadas neste Norte do Brasil”
(A Igreja arma sua tenda na
Amazônia, Manaus, 9 a 18 de setembro de 1997).
- Santarém 2012: A ação evangelizadora favoreceu
o crescimento de uma Igreja mais local, ministerial, laical e missionária. Ao
celebrar os 40 anos desde o Documento de Santarém, a Igreja na Amazônia
manifesta a continuidade de sua caminhada como discípula missionária do Reino e
enfrenta corajosamente velhos e novos desafios:
“Diante
dos desafios sociais, políticos,
econômicos,
culturais, religiosos e eclesiais
da
realidade amazônica, decidimos fortalecer o compromisso profético de
transformação e reafirmar o projeto de formação inspirado na espiritualidade do
seguimento de Jesus, que convoca a Igreja
para uma
profunda conversão pastoral”
(DAp, 170-175; 360-365, citado em
“Conclusões de Santarém: memória e compromisso, 2012”).
- Papa Francisco 2013: convida os Bispos do Brasil na
JMJ a refletir sobre a realidade política e religiosa da Amazônia Legal e
promover e defender a vida dos habitantes dessa região e de sua rica
biodiversidade afirmando que a Amazônia é “teste decisivo, banco de prova
para a Igreja e a sociedade brasileiras” (Rio de Janeiro, 27 de julho de
2013). Essas palavras incentivam-nos a retomar as intuições de Santarém 1972 e
Manaus 1974 e dar-nos conta da atualidade das prioridades de então: formação de
agentes de pastoral – comunidades cristãs de base – pastoral indígena – grandes
projetos – juventude.
PRIMEIRO
ENCONTRO DA IGREJA CATÓLICA NA AMAZÔNIA
“A Igreja
que está na Amazônia não como aqueles que têm as malas na mão, para partir depois de terem
explorado tudo o que perderam.
Desde o
início a Igreja está presente na Amazônia com missionários, congregações
religiosas, sacerdotes, leigos e bispos e lá continua presente e
determinante no futuro daquela área”
(Papa
Francisco aos Bispos do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013).
Novamente
nos encontramos em Manaus, desta vez com a participação de todos os regionais
da CNBB que integram a Amazônia Legal (Norte I, II e III, Noroeste, Nordeste 5
e Oeste II). Sabemos que temos um mesmo caminho a palmilhar. Lembramo-nos de
que Jesus mesmo é o Caminho (Jo 14,6). Jesus caminha conosco como o fez com os
discípulos de Emaús que exclamaram: “Não ardia o nosso coração quando ele nos
falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras!” (Lc 24,32). E não foi
adiante, mas “entrou para ficar” (Lc 24,29). Jesus está na Amazônia para ficar.
E o reconhecemos ao partir o pão...
Refletimos
nestes dias sobre problemas e desafios
que continuam a atingir e causar danos e ameaças à vida e à existência de
pessoas e povos e ao meio ambiente na Amazônia.
·
- a realidade urbana e a mobilidade humana que tantos sofrimentos têm
causado aos povos amazônidas como o desenraizamento da terra e a perda
do patrimônio cultural e religioso próprio e comum aos povos tradicionais e dos
que vêm de outras regiões;
· - um
acentuado crescimento das igrejas evangélicas e dos sem-religião também na Amazônia, como consequência
da precária presença de nossa Igreja nos movimentos migratórios;
· - os
grandes projetos implementados na região, de modo especial as hidrelétricas, que representam uma nova invasão do capital
visando explorar as nossas riquezas naturais e aproveitar o potencial
energético de nossos rios, sem olhar para os prejuízos que causam ao
meio-ambiente com sua imensa biodiversidade e a destruição da vida e da
história de muitos povos tradicionais;
· - o
desmatamento contínuo e
novamente crescente das florestas amazônicas nos assusta pelos prejuízos
incomensuráveis e pela ameaça ao equilíbrio ecológico do planeta; frente ao
desmatamento, à concentração da terra e
às monoculturas percebemos a urgência da realização da Reforma Agrária e
Agrícola;
· - o crime impune da prática do trabalho escravo que ocorre nas empresas do agronegócio e nas áreas
de mineração;
· - o criminoso tráfico de pessoas e drogas, sustentado pela ganância, miséria e impunidade, e o assassinato de jovens;
· - os povos indígenas e quilombolas denunciam os
graves riscos de perderem, através da
Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215), direitos conquistados em relação à
demarcação e garantia de seus territórios, asseguradas nos Art. 231 e 232
da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988; lembramos ainda que o Art. 68
das Disposições Transitórias da Constituição Federal reconhece aos
remanescentes dos quilombos a propriedade definitiva de suas terras, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
- o domínio de um sistema único de mercado, o
individualismo típico da cultura/sociedade de hoje e a violência urbana destroem os laços e as relações tradicionais: a
família, a natureza, o mundo dos povos indígenas, dos caboclos, seringueiros,
agricultores, ribeirinhos.
- Tudo é desagregado e desestruturado e essa
realidade provoca a crise da esperança, pois rouba os sonhos, as
aspirações, desorganiza as lutas, abre espaços para messianismos políticos e
religiosos ou para um milenarismo alienante e vazio de sentido.
Esses
problemas atingem também os fiéis em suas necessidades subjetivas: sua busca de
Deus e sua noção de vinculação com a Igreja. Está na hora de valorizarmos a
religiosidade do povo e ampliarmos o diálogo ecumênico e inter-religioso.
COMPROMISSOS
Os
enormes desafios apresentados nos relatos e testemunhos nos interpelam como
Igreja na Amazônia Legal a assumir compromissos pastorais que devem nortear a
caminhada de nossa Igreja no presente e no futuro:
Reafirmamos
nossa identidade de ser Igreja discípula
da Palavra, testemunha do dialogo, servidora e defensora da vida, irmã da
criação, missionária e ministerial, que assume a vida do povo, que se articula
na paróquia como rede de comunidades e nas comunidades eclesiais de base
(cf. Conclusões de Santarém: memória e compromisso, 2012, p. 19).
Causa-nos
uma profunda dor ver milhares de nossas
comunidades excluídas da eucaristia dominical. A maioria delas só tem a
graça de celebrar o Memorial da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor uma,
duas ou três vezes ao ano. O Senhor, na véspera de sua morte, não deu um bom
conselho, mas um mandato explícito: “Fazei isto em minha memória” (1 Cor 11,24;
Lc 22,19). O Decreto “Presbyterorum Ordinis” do Concílio Vaticano II declara
que a Eucaristia é fonte e, ao mesmo tempo, ápice de toda a Evangelização (cf.
PO 5). “Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro
na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve
começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). Também a Constituição Dogmática “Lumen
Gentium” fala da Eucaristia como “fonte” e “ponto culminante de todas a vida
cristã” (LG 11). Torna-se urgentemente necessário criar estruturas em nossa
Igreja para que os 70% de comunidades, que hoje estão excluídos da celebração
eucarística dominical, possam participar da “fração do pão” (At 1,42), do “sacramento da piedade, sinal de unidade, vínculo da caridade, banquete pascal” (SC 47).
A cultura
urbana transforma profundamente a compreensão do papel dos leigos e da mulher na Igreja. Na sociedade civil, eles
vivenciam processos de empoderamento social quando se exercitam na construção
de uma sociedade que preserve os direitos sociais e coletivos. Práticas e
relações cotidianas exigem hoje, no interior das pastorais, modelos eclesiais assentados em relações
recíprocas, mais do que no complemento, no diálogo horizontal em lugar de imposições verticais, na profunda
experiência de serviço em lugar das
lutas pelo poder.
O protagonismo dos leigos é
insubstituível e imprescindível, na ação transformadora da realidade em que vivem,
marcada pela exclusão e pela violência. O
campo específico da missão dos leigos/as é o das realidades em que vivem e trabalham. É o mundo da
família, do trabalho, da cultura, da política, do lazer, da arte, da
comunicação, da universidade. É nos diversos níveis e instituições, nos
Conselhos de Direitos, em campanhas e outras iniciativas que busquem efetivar a
convivência pacífica, no fortalecimento da sociedade civil e do controle
social. É na formação de pensadores e pessoas que estejam, nos níveis de
decisão, evangelizando com especial atenção e empenho (cf. EN 70).
A corresponsabilidade e participação de
leigas e leigos, como sujeitos com vez e voz, deve acontecer na elaboração
e execução dos planejamentos pastorais, nos centros de discussão e decisão das
Igrejas Particulares.
“Urge
formar ministérios adequados às necessidades das comunidades, especialmente do Ministério do Pastoreio de comunidades, exercido
por leigas e leigos que sejam servas e servos do povo, abertos ao diálogo e ao
trabalho em equipe, e que, devidamente preparados, assumam em nome da Igreja a
direção pastoral de uma comunidade” (A Igreja arma sua tenda na Amazônia,
Manaus, 9 a 18 de setembro de 1997, n. 47).
Almejamos
investir na formação de presbíteros e de
irmãos e irmãs de vida consagrada – autóctones e os que chegam de fora –
para que sejam despojados, simples, não busquem a autopromoção, que sejam
missionários e vivam em maior sintonia e contato com as comunidades e saibam
trabalhar em equipe com os/as leigos/as, evitando centralismo, clericalização e
autoritarismo.
Comprometemo-nos
em a dar visibilidade ao tráfico de pessoas para enfrentar esses crimes
hediondos contra a liberdade e dignidade da pessoa humana. Apostamos na Campanha da Fraternidade de 2014 que
tem como tema “Fraternidade e Tráfico Humano”.
Precisamos
dar mais ênfase aos meios de comunicação,
pois sabemos da sua importância para a Evangelização.
Conscientes
de que a problemática da Amazônia é global, queremos abrir-nos a uma visão
panamazônica que nos convoca a buscar caminhos de colaboração e compromisso
entre as Igrejas na América Latina.
Queremos
dar atenção especial aos jovens,
através do apoio e incentivo à Pastoral da Juventude, estimulando as dioceses e
congregações religiosas a liberarem presbíteros e religiosas para acompanhar os
jovens, para que sejam oferecidos cursos de formação de assessores,
preparando-os para este serviço à juventude na Amazônia.
UMA
IGREJA COM ROSTO AMAZÔNICO
A Igreja
Católica na Amazônia Legal vive e cresce com características próprias,
enraizadas na sabedoria tradicional e na religiosidade popular que durante
séculos alimentou e continua a manter viva a espiritualidade dos povos da
floresta e das águas, e agora, do mundo urbano. Enfrenta com alegria as
dificuldades das distâncias e da falta de comunicação para encontrar e oferecer
ao rebanho, confiado a nós pelo Senhor da messe, a luz da Palavra de Deus e a
Eucaristia como alimentos que revigoram e animam as forças para viver a
comunhão com Deus e cuidar da Amazônia como chão da partilha, pátria solidária,
“morada de povos irmãos e casa dos pobres” (DAp 8).
A
carinhosa devoção a Nossa Senhora de Nazaré, Rainha da Amazônia, nos leve a
cumprir o que ela nos pede: “Fazei o que Ele vos disser!” (Jo 2,5).
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