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17 de junho de 2014

Papa Francisco fala em entrevista sobre violência, ateísmo e Copa do mundo


“Nosso sistema econômico mundial não se sustenta”, disse o Bispo de Roma em uma entrevista concedida ao jornal espanhol La Vanguardia. “Eu não tenho nenhuma iluminação; não trouxe debaixo do braço nenhum projeto pessoal”, garante. “Descartamos uma geração inteira pelo simples fato de manter um sistema que não é bom”, opina sobre os jovens desempregados.
Um dia após a oração com os presidentes de Israel e da Palestina, o Papa Francisco cedeu uma entrevista a Henrique Cymerman, publicada no jornal La Vanguardia, 13-06-2014. A tradução é de André Langer, publicada no site IHU.

A violência em nome de Deus domina o Oriente Médio.

É uma contradição. A violência em nome de Deus não é uma exclusividade do nosso tempo. É algo antigo. Em perspectiva histórica é preciso admitir que os cristãos, às vezes, também a praticaram. Quando penso na Guerra dos Trinta Anos, era violência em nome de Deus. Hoje, é inimaginável, não é verdade? Chegamos, às vezes, pela religião, a contradições muito sérias, muito graves. O fundamentalismo, por exemplo. As três religiões têm seus grupos fundamentalistas, pequenos em relação a todo o resto.

E qual é a sua opinião sobre o fundamentalismo?

Um grupo fundamentalista, embora não mate ninguém, embora não ataque ninguém, é violento. A estrutura mental do fundamentalismo é a violência em nome de Deus.

Alguns dizem que o senhor é um revolucionário.

Deveríamos chamar a grande Mina Mazzini, cantora italiana, e dizer-lhe “prendi questa mano, zinga” e que leia o meu passado, para ver que... (risos) Para mim, a grande revolução é ir às raízes, reconhecê-las e ver o que essas raízes querem dizer nos dias de hoje. Não há contradição entre ser revolucionário e ir às raízes. Mais ainda, creio que a maneira de fazer verdadeiras mudanças é a identidade. Nunca se pode dar um passo na vida se não for de atrás, sem saber de onde venho, qual é o meu sobrenome, o sobrenome cultural ou religioso que eu tenho.


O senhor quebrou muitos protocolos de segurança para aproximar-se das pessoas.

Sei que pode me acontecer alguma coisa, mas isso está nas mãos de Deus. Recordo que no Brasil haviam preparado um papamóvel fechado, com vidros, mas eu não posso saudar um povo e dizer-lhe que gosto muito dele dentro de uma lata de sardinhas, mesmo que seja de vidro. Para mim, isso é um muro. É verdade que algo pode me acontecer, mas sejamos realistas: na minha idade, não tenho muito a perder.

Por que é importante que a Igreja seja pobre e humilde?

A pobreza e a humildade estão no centro do Evangelho e o digo num sentido teológico, não sociológico. Não se pode entender o Evangelho sem a pobreza, mas há que distingui-la do pauperismo. Eu creio que Jesus não quer que os bispos sejam príncipes, mas servidores.

O que a Igreja pode fazer para reduzir a crescente desigualdade entre ricos e pobres?

Está provado que com a comida que sobra seria possível alimentar as pessoas que têm fome. Quando você vê fotografias de crianças desnutridas em diversas partes do mundo, põe a mão na cabeça, não é possível entender! Creio que estamos em um sistema econômico mundial que não é bom. No centro de todo sistema econômico deve estar o homem, o homem e a mulher, e todo o resto deve estar a serviço deste homem. Mas nós colocamos o dinheiro no centro, o deus dinheiro. Caímos em um pecado de idolatria, a idolatria do dinheiro.

A economia move-se pelo afã de ter mais e, paradoxalmente, alimenta-se uma cultura do descarte. Descarta-se os jovens quando se limita a natalidade. Também se descarta os idosos porque já não servem, não produzem, são uma classe passiva... Ao descartar as crianças e os idosos, descarta-se o futuro de um povo, porque as crianças projetam-se com força para frente e porque os anciãos nos dão a sabedoria, têm a memória desse povo e devem passá-la aos jovens. E agora também está na moda descartar os jovens pelo desemprego. Preocupa-me muito o índice de desemprego dos jovens, que em alguns países passa dos 50%. Alguém me disse que 75 milhões de jovens europeus menores de 25 anos estão desempregados. É uma barbaridade.

Mas descartamos toda uma geração por manter um sistema econômico que já não se sustenta, um sistema que, para sobreviver, deve fazer a guerra, como sempre fizeram os grandes impérios. Mas como não se pode fazer a Terceira Guerra Mundial, então fazem-se guerras regionais. E o que isto significa? Que se fabricam e vendem armas, e com isto os balanços das economias idolátricas, as grandes economias mundiais, que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente se sanam. Este pensamento único tira a riqueza da diversidade de pensamento e, portanto, a riqueza de um diálogo entre pessoas. A globalização bem entendida é uma riqueza. Uma globalização mal entendida é aquela que anula as diferenças. É como uma esfera, com todos os pontos equidistantes do centro. Uma globalização que enriquece é como um poliedro, todos unidos, mas cada qual conservando sua particularidade, sua riqueza, sua identidade. Não é o que está acontecendo.

O senhor se sente ainda como um pároco ou assume seu papel de cabeça da Igreja?

A dimensão de pároco é a que mais mostra a minha vocação. Servir as pessoas vem de dentro de mim. Desligo a luz para não gastar muito dinheiro, por exemplo. São coisas de um pároco. Mas também me sinto Papa. Ajuda-me a fazer as coisas com seriedade. Meus colaboradores são muito sérios e profissionais. Tenho ajuda para cumprir com meu dever. Não devo dar uma de Papa pároco. Seria imaturo. Quando vem um chefe de Estado, tenho que recebê-lo com a dignidade e o protocolo que merece. É verdade que tenho meus problemas com o protocolo, mas é preciso respeitá-lo.

O senhor está mudando muitas coisas. Para que futuro estas mudanças estão levando?

Não tenho nenhuma iluminação. Não tenho nenhum projeto pessoal que trouxe debaixo do braço, simplesmente porque nunca pensei que me deixariam aqui, no Vaticano. Todo o mundo sabe disso. Vim com uma malinha para voltar logo em seguida para Buenos Aires. O que estou fazendo é cumprir o que os cardeais refletiram nas Congregações Gerais, ou seja, nas reuniões que, durante o Conclave, tiveram todos os dias para discutir os problemas da Igreja. Daí saem reflexões e recomendações. Uma recomendação muito concreta era que o próximo papa deveria contar com um conselho externo, isto é, com uma equipe de assessores que não morassem no Vaticano.

Diante do avanço do ateísmo, qual é a sua opinião sobre as pessoas que acreditam que a ciência e a religião são excludentes?

Houve um avanço do ateísmo na época mais existencial, talvez sartreana. Mas depois viu um avanço rumo a buscas espirituais, de encontro com Deus, de mil maneiras, não necessariamente as formas religiosas tradicionais. O enfrentamento entre fé e ciência teve seu auge no Iluminismo, mas que hoje não está tanto na moda, graças a Deus, porque nos demos conta da proximidade que há entre uma coisa e a outra. O Papa Bento XVI tem um bom magistério sobre a relação entre fé e ciência. Em linhas gerais, o mais atual é que os cientistas sejam muito respeitosos com a fé, e o cientista agnóstico ou ateu diga: “Não me atrevo a entrar nesse campo”.

Qual é a sua opinião sobre a renúncia de Bento XVI?

O Papa Bento fez um gesto muito nobre. Abriu uma porta, criou uma instituição, a dos eventuais papas eméritos. Há 70 anos, não havia bispos eméritos. Hoje, há quantos? Bom, como vivemos mais tempo, chegamos a uma idade em que não podemos seguir adiante com as coisas. Eu farei o mesmo que ele, pedirei ao Senhor para me iluminar quando chegar o momento e me dizer o que tenho de fazer, e seguramente vai me dizer.

Tem um quarto reservado em uma casa de repouso em Buenos Aires.

Sim, em uma casa de padres idosos. Eu deixaria a Arquidiocese no final do ano passado e eu já havia apresentado a renúncia ao Papa Bento quando completei os 75 anos. Escolhi um quarto e disse: “quero morar aqui”. Trabalharia como padre, ajudando as paróquias. Esse seria o meu futuro antes de ser papa.

Não vou lhe perguntar quem apóia na Copa do Mundo...

Os brasileiros me pediram neutralidade (ri) e cumpro com minha palavra, porque o Brasil e a Argentina sempre são rivais.

Como gostaria de ser recordado na história?

Não pensei nisso, mas gosto quando alguém, recordando outra pessoa, diz: “Era um cara bom, fez o que pôde, não foi tão ruim”. Com isso me conformo.

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